Walter Carlos Costa
Jorge Luis Borges teve, ao longo da vida, uma relação íntima com a poesia, gênero que cultivou sobretudo na juventude e na maturidade. Embora, em algumas declarações, se considerasse principalmente poeta, reconhecia que sua fama se devia mais à ficção e ao ensaio. Mas Borges também produziu crítica e teoria da poesia durante toda a sua carreira literária. Esta comunicação examina a concepção poética de Borges em sua maturidade, tal como aparece formulada no volume This Craft of Verse que reúne seis conferências proferidas na Universidade de Harvard, Estados Unidos, no ano acadêmico 1967-1968.
As fitas contendo as conferências ficaram durante três décadas em um cofre da biblioteca da universidade até verem a luz no ano 2000, em uma conjuntura em que Borges alcança definitivamente status de clássico, inclusive em seu país natal, onde parte importante do público e da crítica costumava expressar fortes reservas à sua obra. As fitas são transcritas também em um momento de publicação exaustiva de toda a imensa produção escrita de Borges dispersa por revistas e jornais e uma não menos imensa produção oral espalhada em centenas de entrevistas e conferências dadas na Argentina e no exterior. Podemos dizer que essa obra dispersa de Borges modifica radicalmente a percepção que tínhamos do autor de Ficciones na medida mesma em que apresenta um Borges menos monolítico, às vezes contraditório e às vezes mais matizado do que o Borges dos livros publicados durante sua vida e com sua aprovação. E entre a grande quantidade de material, inédito em livro, publicada nos últimos anos, este livrinho se destaca por apresentar de forma unificada e sistemática a teoria da poesia de Borges, uma teoria que retoma opiniões formuladas em inúmeros prefácios, resenhas e intervenções orais anteriores.
O texto, de leve leitura, e que não possui o tom intimidatório de tantos de seus ensaios, foi traduzido no Brasil como Esse ofício do verso por José Marcos Macedo e publicado pela Companhia das Letras em 2000, o mesmo ano em que saiu a edição original. Calin-Andrei Mihailescu, o organizador da edição norte-americana retraça o contexto em que surgiu este curioso testamento teórico e crítico de Borges e que ele caracteriza da seguinte maneira:
Esse Ofício do verso é uma introdução à literatura, ao gosto e ao próprio Borges. No contexto de suas obras completas, compara-se apenas a Borges, oral (1979), que contém as cinco palestras –algo mais restritas no escopo que estas- que ele deu em maio-junho de 1978 na Universidade de Belgrano em Buenos Aires. Estas Norton Lectures, que precedem Borges, oral em uma década, são um tesouro de riquezas literárias que nos chegam de forma ensaística, despojada, muitas vezes irônica e sempre estimulante. (Borges 2000: 128)
De fato, em Esse ofício do verso sucede algo similar ao ocorrido com as contribuições feitas por Borges para a revista feminina El Hogar, entre 1937 e 1939. Nessas contribuições, a maioria das quais foi editada por Enrique Sacerio-Garí e Emir Rodríguez Monegal e publicado, sob o título de Textos cautivos, em 1986 Borges chega ao auge de sofisticação analítica e elegância estilística na redação de textos curtos de tipo ensaístico e com forte teor teórico e crítico. O tom voltairiano, presente em tantas outras resenhas publicadas em inúmeros periódicos, cede lugar em Textos cautivos a uma atitude quase didatizante e sempre atenta com o leitor. Por não se dirigir aos pares mas a um público feminino que ele supunha desconhecedor das polêmicas literárias, Borges explica de forma compactada, mas clara, o que quer dizer e mantém as alusões intertextuais dentro de um limite tolerável para o leitor culto médio, além de moderar o uso da ironia e se abster da desconcertante técnica das falsas atribuições.
De forma similar, em Esse ofício do verso, Borges fala em inglês para um público universitário norte-americano, duas circunstâncias que marcam intensamente no tom geral do texto. O fato de usar o inglês lhe dá uma maior liberdade, mas também significa alguma coerção ao seu modo habitual, visto que embora o inglês tenha sido, como se sabe, o principal idioma de suas leituras, sua escrita, com raríssimas excessões, foi realizada em espanhol, um espanhol que ele foi limando lentamente até chegar à precisão, limpidez e graça da obra madura. Por outro lado, o próprio fato de falar para um público universitário americano faz com que ele inverta seu procedimento normal: as eventuais explicações do intertexto se dá na direção espanhol-inglês e não inglês-espanhol. Essas explicações quase ausentes no jovem Borges serão moeda corrente no Borges oral dos últimos anos. Outro aspecto importante: ao produzir seus textos escritos ou orais em espanhol, Borges tinha consciência de remar contra a corrente, em vários planos: desde a biblioteca eventualmente compartilhada com o leitor ou ouvinte até o modo retórico dominante em seu espaço lingüístico-cultural. Tanto na Argentina, como no âmbito hispânico mais amplo, cultivava-se uma biblioteca fundamentalmente francesa. Assim, ao citar seus textos preferidos Borges tendia a assumir uma postura de quem tem que explicar por que está escolhendo autores não freqüentados por seus interlocutores. Com os ouvintes norte-americanos Borges sabe que pelo menos parte de seus autores preferidos serão autores que eles talvez não admirem mas que tiveram que assimilar durante sua formação. Também em termos retóricos, Borges estará mais à vontade entre norte-americanos: sua declarada obsessão pela ética e sua predileção pelo subentendido, são dois traços típicos da cultura anglo-saxônica, ainda que o segundo seja menos pronunciado nos Estados Unidos do que no Reino Unido. Essa tranqüilidade não escapou ao organizador da edição, que nota:
Ao contrário do tom brusco e idiossincrático que caracteriza a maioria de suas entrevistas e palestras em espanhol, as maneiras de Borges em Esse ofício do verso são a de um convidado de honra, versátil e de fala mansa. (Borges 2000: 130)
À vontade com o público e gozando de um prestígio crescente, que logo se transformaria em verdadeira moda mundial, Borges retoma algumas de suas posições poéticas e as expõe de maneira quase socrática, fingindo que está descobrindo no momento mesmo da palestra o que foi arduamente conquistado durante décadas. Mesmo as posições mais polêmicas se tornam mais convincentes pelo clima distendido que se sente reinar entre conferencista e público: um conferencista humilde e dubitativo, encantadoramente anacrônico e um público pré-disposto à veneração do poeta cego e sábio.
Em seguida, discutirei brevemente alguns pontos cruciais desenvolvidos neste livro – e que dão uma feição definitiva, e freqüentemente mais sutil, a posições borgianas, umas muito divulgadas, outras muito pouco conhecidas, umas de acordo com a poesia de Borges, outras em franco desacordo com ela. Estes pontos, que evidentemente não esgotam o livro, são: a crítica à vanguarda, a defesa de um sentido poético sobretudo sonoro e rítmico e a defesa da poesia como dom cotidiano da vida.
Crítica à vanguarda
Para os brasileiros, e também parcialmente para os hispano-americanos, poesia moderna quer dizer, basicamente poesia de vanguarda, poesia lírica, poesia fragmentária e poesia que explora os aspectos sonoros e visuais, ou seja, a poesia produzida no Ocidente depois do simbolismo. Entre nós, coincide, em grande parte, com a poesia produzida pelo Modernismo e pelo concretismo. Borges vai na contramão de quase tudo isso e não por acaso o Borges cultuado no Brasil é sobretudo o Borges contista e ensaísta. Neste livro não há, como em outros escritos seus, uma crítica acerba à vanguarda, inclusive a vanguarda ultraísta da qual era um dos chefes e que fustigou incansavelmente; há algo mais demolidor: certa condescendência serena, como quando trata dois dos ícones da modernidade como autores juvenis:
Mas há outros escritores que se deve ler quando se é jovem, porque se a pessoa chega a eles quando está velha, grisalha e entrada em anos, essa leitura dificilmente pode ser prazerosa. Talvez seja uma blasfêmia dizer que, a fim de desfrutar Baudelaire e Poe, devemos ser jovens. Mais tarde é difícil. (Borges 2000: 112)
Essa crítica à vanguarda se estende, implicitamente, à escolha dos poetas para ilustrar seus argumentos. Em vez de Pound, Mallarmé, Vallejo ou Huidobro, temos Kipling e Stevenson, em vez de Laforgue, Dante Gabriel Rossetti, em vez de Lorca ou Octavio Paz, o obscuro Rafael Cansinos-Asséns, em vez de Stefan George, Heine e, como sempre, Homero, Dante e os poetas épicos anglo-saxônicos e islandeses. E quando evoca e.e. cummings, não é para louvar a invenção poético-tipográfica (que ele critica em vários outros textos) mas para ilustrar um uso particularmente hábil da metáfora que Borges caracteriza como uma das metáforas primordiais, a que equaciona sonho e vida. Aliás, estas palestras confirmam o uso, comum em Borges, de valorizar certos autores menores ou escritos menores em autores maiores. A mensagem parece clara: não importa o lugar ocupado no cânone, o que importa é a arte de garimpar qualidade literária independentemente de contingências espaço-temporais.
A rejeição à poética vanguardista aparece também no capítulo que trata da metáfora. Nele Borges procede a um exame que é ao mesmo tempo livre e técnico. Repetindo uma idéia que encontramos em outros escritos, a de que o importante são umas poucas metáforas essenciais, não a invenção de novas metáforas, Borges efetua simultaneamente uma crítica a certo tipo de vanguarda, para a qual a metáfora é tudo e outro tipo de vanguarda para qual a metáfora não é importante ou deve ser evitada. A conclusão não poderia ser mais borgiana: a de que a metáfora é mais simples e mais complexa do que pensa qualquer escola poética particular:
Agora somos levados às duas óbvias e principais conclusões dessa palestra (“A metáfora”). A primeira, claro, é que, embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples. Mas isso não precisa nos preocupar, já que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as variações são diferentes. E a segunda conclusão é que há metáforas –por exemplo, “teia de homens” ou “caminho de baleia”- que não podem ser reconduzidas a modelos definidos. (Borges 2000: 49)
Poesia e pensamento, poesia e som
Quem examina com cuidado a literatura produzida por Borges se depara, com freqüência, com uma contradição: sua prosa tende a conter, devidamente disfarçados, mais procedimentos poéticos que sua poesia
Seus contos e ensaios costumam ser, mais no início de sua carreira mas também até o final, elusivos e elípticos, enquanto seus poemas são, via de regra, lógicos e claros. Espanta pouco, portanto, que leitores mais intelectualizados prefiram sua prosa e leitores mais “conteudistas” prefiram sua poesia. Uma segunda contradição é que enquanto o Borges poeta opta sistematicamente pela clareza, o Borges crítico e teórico de poesia abre um grande espaço para o puramente sonoro e rítmico. É como se Borges aplicasse a si mesmo, pelo menos parcialmente, o que diz de poetas clássicos defendendo uma poética romântica e poetas românticos defendendo uma poética clássica. Ao mesmo tempo em que defende poetas-com-pensamento (entre outros o conterrâneo Almafuerte) Borges reserva um lugar especial para a poesia-sem-pensamento na conferência “Pensamento e poesia”:
Há versos, é claro, que são belos e sem sentido. Porém ainda assim têm um sentido – não para a razão, mas para a imaginação. (Borges 2000: 99)
Esta declaração, surpreendente para quem criticou (embora mais tarde tenha feito autocrítica dessa crítica) a Góngora e ignorava César Vallejo, os surrealistas e quase toda a poesia experimental, é rematada com um elogio amplo e irrestrito a um poeta que escreveu em espanhol e que pertence a um país com o qual Borges não é normalmente associado:
De algum modo, embora eu adore o inglês, quando rememoro versos ingleses sinto que minha língua, o espanhol, está me chamando. Gostaria de citar alguns versos. Se vocês não os entenderem, talvez se consolem pensando que eu tampouco os entendo, que eles não têm sentido. É com formosura, de um modo adorável, que não têm sentido; não são destinados a ter nenhum sentido. São daquele poeta boliviano caído no esquecimento, Ricardo Jaimes Freyre – um amigo de Darío e de Lugones. Ele os escreveu na última década do século XIX. Gostaria de recordar o soneto inteiro – imagino que algo de sua qualidade sonora chegaria até vocês. Mas não é preciso. Penso que estes versos sejam suficientes. Dizem eles:
Peregrina paloma imaginaria
Que enardeces los últimos amores
Alma de luz, de música y de flores
Peregrina paloma imaginaria.
Eles não significam nada, não se destinam a significar nada; e ainda assim subsistem. Subsistem como algo belo. Eles são –ao menos para mim- inesgotáveis. (Borges 2000: 91)
Finalmente, talvez o mais espantoso desse livro seja a defesa da poesia como algo ligado à experiência vital. Tido por tantos como um ficcionista que se nutre mais de livros que de vida, supostamente distante da palpitação do dia-a-dia e das misérias físicas e psíquicas que afligem a maioria dos mortais, o Borges de Este ofício do verso ao mesmo tempo admira e contesta a teorização:
Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma “expressão”. Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante. (Borges 2000: 11)
Da mesma forma, Borges alerta para o endeusamento do livro, um tópico que percorre toda sua obra, onde abundam alusões aos perigos da bibliofilia e da tipografia, e que aprofundará em uma das conferências reunidas em Borges, oral:
Ora, tendemos a fazer uma confusão corriqueira. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a Divina comédia, ou Fray Luis de León, ou Macbeth, estaremos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poesia.
Quero concluir dizendo que esta poética de Borges, exposta em 1967, e que parece contradizer sua poesia de emoções contidas anuncia, de algum modo, o tom quase confessional de seus últimos livros de versos, como Atlas (1984) e Los conjurados (1985), em que um sentimento amoroso por lugares e pessoas percorre delicadamente os poemas que celebram as muitas formas da vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Borges, Jorge Luis Esse ofício do verso, organização de Calin-Andrei Mihailescu. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Borges, Jorge Luis Obras completas IV (Prólogo con un prólogo de prólogos, Borges, oral, Textos cautivos, Biblioteca personal). Barcelona: Emecé, 1996.
Borges, Jorge Luis This Craft of Verse. Cambridge, Massachussets and London, England: Harvard University Press, 2000.
O volume Borges en El Hogar (Buenos Aires: Emecé, 2000), recolhe os textos excluídos por Enrique Sacerio-Garí e Emir Rodríguez Monegal de sua antologia Textos cautivos.
É o que parece reconhecer, indiretamente, Augusto de Campos na surpreendente entrevista-reportagem que fez a Borges (“Quase-Borges” in Boletim bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, 45 (1/4), janeiro-dezembro 1984). Augusto, que afirma ser Borges “o maior escritor vivo”, cita, com admiração ensaios e contos de Borges, mas nenhum verso.
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